quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Afastar-se


Estar longe de tudo tem uma vantagem: daqui, a gente se vê.
É inevitável: afastar-se é o ingrediente certo para o
autoconhecimento. Eu não acredito na mudança daqueles que
não se afastam de si uns minutos por dia, umas horas por semana,
uns dias por mês, umas semanas por ano. E eu me evitei muito,
insisti em não-querer, mas não deu: minha vida se pôs na minha frente,
 me olhou e pediu ordem. E eu fui comigo, assustada, temendo a mim.
 Abri a porta: que imensidão é essa? Era eu. 
Eu, que há muito me sentia vazia, me vejo, agora,
 assim: carregando tantos mundos dentro de um só.
 De gostos variados, formas diversas, colorido à beça.

O mundo bonito da minha infância, com cheirinho de carinho de mãe,
 mar e liberdade. E eu, pequenininha, me sentindo toda-toda
dançando É o Tchan pra todo mundo ver. Os meus amigos imaginários,
 de longas conversas, companhias de quiosque,
 que eram tão mas tão especiais,
embora eu tenha esquecido o nome de todos.
 O medo do escuro, de fantasma, de bicho-papão, da loira-do-banheiro,
 de lobisonem, medo daquela babá malvada , medo daquele rapaz
que me ensinava coisas feias e que eu nunca contei pro meu pai
porque ele podia bater no rapaz e eu tinha medo, também.
E a menina de olhos de céu que vinha do outro lado do mundo
pra brincar comigo e com a outra mocinha de cabelo queimado do sol,
e o ciclo continua. Eu indo passar férias na casa da vovó e,
de tardinha, sentada nas pernas dela enquanto ela catava meus piolhos. 
As crianças todas reunidas ao anoitecer brincando de
 trinta-e-um-salve-todos, as rodinhas que rendiam em 
longas histórias de terror, e eu voltando pra casa correndo,
 sem olhar pra trás. O mundo que era o meu antigo quintal.

O mundo da minha adolescência meio surf, meio reggae, meio rock and roll.
A minha paixão de verão e as cartinhas todas.
Eu cantarolando E sou rebelde e tentando aprender a beijar numa laranja,
mas ardia a boca e muito. Noites em claro conversando
com a minha irmã de coração e no dia seguinte:
 de onde vocês tiram tanto papo?, perguntava o papai, sorrindo.
E o meu ciúme dos outros amigos que ela tinha,
por medo de perder a amizade dela. Eu descobrindo meu corpo,
falando dessa quentura que subia dos pés à cabeça
quando aquele moço chegava perto. Meu primeiro dia no novo colégio.
Aprender a andar sozinha de ônibus, conviver com gente da capital. 
Muita timidez. Mania de achar que errar é para os fracos, e perder, também.
Descobri a importância do abraço com a nova amiga linda
que abraçava apertado e tão gostoso que dava vontade de morar no abraço dela.
E quando eu quis escrever bonito igualzinho aquela escritora bonita,
e queria ser ela também, mas depois descobri que ser quem a gente é,
é bem mais bonito. Descobri o que é falta de dinheiro.
O que é querer e não poder. Descobri o que é ser deixada pra segundo plano
e como é ruim crescer tão depressa. Depressão. Refúgio virtual.
Um agonia, queria morrer. Mas descobri que a vida é um presente de Deus.
Deus existe?

O mundo do vestibular. Olheiras. Tu vai passar, tem nem perigo.
Muitas expectativas em mim, muito medo de não supri-las.
Não passei. Chorei, chorei muito. Senti vergonha de sair pelas ruas,
fugi das interrogações das pessoas. Perder é para quem é forte.
De um relacionamento bobo ao meu primeiro emprego.
Mais descobertas: há pessoas negativas, que vão sempre priorizar
ver tudo que você não faz de bom. Sim, existe gente mal-intencionada no mundo,
gente complexada que tem medo de perder espaço pra você e
faz de tudo pra te dar uma rasteira. Deus existe.
Meu primeiro aniversário trabalhando. É, estou crescendo. 

O mundo que é a minha casa, A comida cheirosa da minha mãe,
o riso tímido dela, o exemplo de mulher que ela é.
A espontaneidade do meu pai, os gritos também;
e eu torcendo corinthians e acreditando nisso, por ele,
pra dar alegria a ele. As conversas sussurradas, noite adentro,
com minha irmã querida. O olhar de amor que o meu amor me dá e
o mundo que eu reservei só pro sorriso dele.
O mundo que eu volto e me busco, de maiô listrado, barrigudinha,
e me arrisco a ser criança de novo. O meu mundo de saudade,
que abriga três florzinhas em forma de quase-moças e muitas,
muitas, muitas lembranças.

O meu encontro comigo. Uma revisão de escolhas, traumas,
inseguranças, incertezas. Uma bagagem pesada, um amor maior que eu,
mas levinho, levinho. Passeando por mim, entre mundos reais e inventados,
fui extraindo o meu melhor e deixando pra lá o que ficou guardado
e que deixava meu coração tão miúdo e apertadinho, tadinho. 
Eu não tenho mais medo do que foi. Nem do que é.

Eu sou.

 “Admito que doeu, que me sufocou. Admito que eu não sabia pra onde correr. Admito que me consumiu, que me corroeu, que me despedaçou. Mas também admito me fez olhar pra frente e entender que tudo nessa vida tem uma razão, e que se você se machuca muito, começa a não doer mais tanto.” .